terça-feira, 15 de abril de 2014

Rua Domingos Cosate, 544

Passei dezesseis anos da minha vida nesse endereço. Talvez seja por isso que o nome da rua e o número da casa estão tão vivos na minha memória. Não posso dizer isso dos outros seis endereços que tive nos outros treze anos. Até hoje preciso conferir meu CEP atual. Em Valença eu não tinha problemas com CEP, lá é só um.

Na frente da minha casa tinha uma capela de Santa Luzia. Eu esperava o ano todo pela festa da santa, dia 13 ou 15 de dezembro, se não me falha a memória. Eram quatro dias de festa. Os sinos que me acordavam as cinco da manhã, sinalizavam o começo de uma das minhas datas preferidas do ano. Não sei explicar porque eu gostava tanto. Não sei se pelo movimento que tomava minha rua ou se porque pelo menos uma vez eu morava perto de alguma coisa. Pode ser também que seja por causa do leilão. O juiz do leilão era o Sr. Cadinelli. Nunca mais o vi, mas não preciso fazer muito esforço para lembrar da voz dele gritando: “Um frango e um vinho, um frango e vinho, cinco reais dou-lhe uma, cinco reais dou-lhe duas, cinco reais dou-lhe três!” e batia o martelo na mesa. Algum homem gente boa havia acabado de arrematar um frango e um vinho para os meninos da rua. Eles pegavam a prenda com a felicidade de alguém  que pega uma mala de dinheiro. Saiam correndo e em algum lugar não muito distante dali, devorariam o frango assado e tomariam todo o vinho. Minha maior frustração: nunca pude ir junto. Minha mãe nunca deixou: “Isso é coisa de menino”, dizia ela. Meus irmãos estavam lá, eu deveria estar também. Para mim era muito injusto. Eu passava o dia todo ajudando a montar a mesa do leilão. Recebia cada prenda. Sabia tudo que tinha de bom ou de ruim pra ser arrematado. As vezes eu ficava lá sozinha, num silencio, numa paz, que parecia só existir naquele lugar. A capelinha era um lugar onde eu podia me esconder do mundo, se quisesse. Conhecia cada canto, cada detalhe. Antes da Dona Ondina (uma senhora que cuidava da capela) colocar caco de vidro em todo o muro, era muito fácil de pulá-lo.

No quintal da frente da minha casa tinham três balanços e dois coqueiros. Meu pai construiu os balanços. O meu era baixinho e com um encosto nas costas, sempre a menina protegida. Mas a diversão da minha casa não estava só nos brinquedos construídos pelo papai, como o balanço e a piscina. A diversão estava no pé de jabuticaba, na horta do vovô, no curral das cabritas, em pegar minhocas na mão e assustar a Tia Diva ou em brincar de cientista com o meu irmão em cima da casa do gás.
Era legal fazer apresentações de teatro na varanda, corrida de cachorrinho... Minha mãe uma vez sugeriu uma competição! Chamamos os amigos que moravam perto, os primos e fizemos corrida do saco, ovo na colher, molhar a cara na água e depois na farinha. 

Éramos três crianças com muito energia, sorte que nossos pais eram criativos e o quintal era grande. Mesmo assim ainda sobrava tempo e disposição de inventar besteiras. Como quando João Felipe e eu nos trancamos com a nossa cachorra Lady no quarto de empregada e depois jogamos a chave pela janela. Meu pai abriu a porta, tirou a Lady e nos deixou trancados lá até na hora do jantar. As coisas pioraram um pouco, porque nós tivemos a ideia de descascar umas batatas que estavam lá dentro e depois cozinha-las no ferro de passar.

Embora fosse uma casa grande, ela estava sempre tomada por sons: vozes, festas, músicas. Pouco a pouco o barulho foi diminuindo, assim como os moradores. Depois de um tempo era só mamãe e eu, dava até eco falar de um cômodo para o outro. Era hora de mudar, nossa casa não tinha sido feita pro silencio, pro vazio.  Até hoje quando eu sonho que estou em casa, é a porta da Domingos Cosate/544, que eu abro. Até hoje quando vou visitar minha avó paterna (ela mora ao lado) sou tomada uma incrível nostalgia. Reconheço os cheiros e os gostos da minha infância, sinto minhas raízes e constato que foram elas que me fizeram crescer tão forte. 

2 comentários:

  1. Quantas histórias fizemos ali... bjs e ótimo texto.

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  2. Que maravilha! tenho muito a completar essa história, faço parte dela e sinto uma imensa saudade, tb sinto os cheiros todos daquele lugar, onde fomos muito felizes!

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