segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Zé, o bode louco.

Seu primeiro apelido foi “Espanta Bolinho”. As pessoas passeavam calmamente com seus cães e acabavam parando para conversar. Geralmente juntavam cinco ou seis cães de pequeno e médio porte e ficavam se cheirando calmamente. Logo atrás vinha eu, sendo carregada pelo Zé. Era questão de segundos para que cada dono pegasse seu cão e saísse do lugar. Só sobrava ele e eu. Ele me olhava com a cara ofegante e feliz, como que se perguntasse: por que meus amigos foram embora?

Sua carinha sempre foi de inocente. Eu custava pra acreditar que um ser tão fofo pudesse ser capaz de destruir quase toda a minha vida. Seria normal se ele tivesse comido um chinelo, roído um móvel... Mas ele não se dava por satisfeito. Teve que comer o celular, as paredes, o rodapé, o sofá, a cama, o colchão, a mesa, o controle remoto com pilhas.

Seu primeiro brinquedo foi um gato de pelúcia. Apelidei o bichinho de Fedor. Ele vivia babado e com um cheiro que fazia jus ao nome. Zé sempre resolvia que a melhor hora de brincar era às duas da manhã e por vezes eu acordei com o Fedor no meu nariz, literalmente.

Na praia eu já o considerava um caso perdido. Língua roxa e olhos esbugalhados era a forma normal dele chegar ao Arpoador. Rasgar cangas, fazer xixi em bolsas, mergulhar em cima de pessoas (inclusive de mim por muitas vezes), roubar os brinquedos dos outros cães e depois bater neles porque não queria devolve-los, eram umas das muitas esquizofrenias do Zé. Se jogar feito avião kamikaze nas maiores ondas, se esfregar na areia até ficar completamente empanado e destruir 385 cocos, eram os passatempos prediletos do Zé.

Seu pior pesadelo era o barulho. Fazia de tudo para encontrar um lugar seguro pra esconder, nem que pra isso tivesse que entrar no guarda-roupa ou então no armário da cozinha. Era normal ter que disputar o chuveiro com Zé quando tinha fogos ou trovão. Se ele entrasse primeiro, o banho ficava pra depois. Por vezes acordei a noite com ele enfiando a cabeça debaixo do meu travesseiro, tremendo como uma criança assustada.

Foi um cachorro com o instinto de caçador subdesenvolvido. Tomava arranhões de gatos, dormia quando era pra caçar ratos, assistia feliz as pombas comerem sua ração, brincava com moscas e fazia cara decepção quando as matava, além de ser recordistas em ganhar mordidas no focinho de cães com menos de 3kg.

Banana era seu ponto fraco, mas nunca vi Zé rejeitar comida. Foi o primeiro cachorro que vi comer alface e acelga. Cenoura, tomate, pão, casca de mamão, melão, casa de melancia, maça, iogurte grego, pedra, pau, anzol. Tudo isso fez parte da dieta dele.

Amava crianças, bebês e qualquer outro tipo de ser que fala. Um dia na feira de Ipanema, sem que eu percebesse, ele estava dentro de um carrinho de bebê dando uma lambida na cara da criança. Ele amava qualquer um. Por vezes ficamos parados esperando o mendigo terminar um afago em sua orelha, o bêbado que dava pão pra ele e o chamava de leão, o vendedor de bananas que quase faliu com a quantidade de bananas que deu pro Zé, e o dia que não tinha banana, ele ganhava caqui. O cara do mercado, as caixas do Zona Sul, as faxineiras, os garçons do bar, os porteiros, meus amigos, minha família. Zé amava a todos e desconfio que todo mundo amava o Zé.

Ele tinha 35 kg de coração e um amor que transbordava. Foi um ser de luz, um anjinho de espírito zombeteiro. Virou minha vida do avesso, ocupou cada canto, espalhou seus pelos por pelo menos três gerações e depois me deixou, num suspiro. Sem aviso prévio, sem tempo pra despedidas, sem uma lambida ou apertão.

Procurei explicações cientificas, espirituais e qualquer outra coisa que tirasse da minha cabeça o sentimento de punição. Tento acreditar que, por ele ser muito especial, precisaram da sua ajuda em outro lugar. Li certa vez que, quanto mais amor você dá a um animal, mais você o auxilia no seu processo evolutivo. Se isso for verdade Bode, a gente se encontra de novo, com toda certeza. 


terça-feira, 15 de abril de 2014

Rua Domingos Cosate, 544

Passei dezesseis anos da minha vida nesse endereço. Talvez seja por isso que o nome da rua e o número da casa estão tão vivos na minha memória. Não posso dizer isso dos outros seis endereços que tive nos outros treze anos. Até hoje preciso conferir meu CEP atual. Em Valença eu não tinha problemas com CEP, lá é só um.

Na frente da minha casa tinha uma capela de Santa Luzia. Eu esperava o ano todo pela festa da santa, dia 13 ou 15 de dezembro, se não me falha a memória. Eram quatro dias de festa. Os sinos que me acordavam as cinco da manhã, sinalizavam o começo de uma das minhas datas preferidas do ano. Não sei explicar porque eu gostava tanto. Não sei se pelo movimento que tomava minha rua ou se porque pelo menos uma vez eu morava perto de alguma coisa. Pode ser também que seja por causa do leilão. O juiz do leilão era o Sr. Cadinelli. Nunca mais o vi, mas não preciso fazer muito esforço para lembrar da voz dele gritando: “Um frango e um vinho, um frango e vinho, cinco reais dou-lhe uma, cinco reais dou-lhe duas, cinco reais dou-lhe três!” e batia o martelo na mesa. Algum homem gente boa havia acabado de arrematar um frango e um vinho para os meninos da rua. Eles pegavam a prenda com a felicidade de alguém  que pega uma mala de dinheiro. Saiam correndo e em algum lugar não muito distante dali, devorariam o frango assado e tomariam todo o vinho. Minha maior frustração: nunca pude ir junto. Minha mãe nunca deixou: “Isso é coisa de menino”, dizia ela. Meus irmãos estavam lá, eu deveria estar também. Para mim era muito injusto. Eu passava o dia todo ajudando a montar a mesa do leilão. Recebia cada prenda. Sabia tudo que tinha de bom ou de ruim pra ser arrematado. As vezes eu ficava lá sozinha, num silencio, numa paz, que parecia só existir naquele lugar. A capelinha era um lugar onde eu podia me esconder do mundo, se quisesse. Conhecia cada canto, cada detalhe. Antes da Dona Ondina (uma senhora que cuidava da capela) colocar caco de vidro em todo o muro, era muito fácil de pulá-lo.

No quintal da frente da minha casa tinham três balanços e dois coqueiros. Meu pai construiu os balanços. O meu era baixinho e com um encosto nas costas, sempre a menina protegida. Mas a diversão da minha casa não estava só nos brinquedos construídos pelo papai, como o balanço e a piscina. A diversão estava no pé de jabuticaba, na horta do vovô, no curral das cabritas, em pegar minhocas na mão e assustar a Tia Diva ou em brincar de cientista com o meu irmão em cima da casa do gás.
Era legal fazer apresentações de teatro na varanda, corrida de cachorrinho... Minha mãe uma vez sugeriu uma competição! Chamamos os amigos que moravam perto, os primos e fizemos corrida do saco, ovo na colher, molhar a cara na água e depois na farinha. 

Éramos três crianças com muito energia, sorte que nossos pais eram criativos e o quintal era grande. Mesmo assim ainda sobrava tempo e disposição de inventar besteiras. Como quando João Felipe e eu nos trancamos com a nossa cachorra Lady no quarto de empregada e depois jogamos a chave pela janela. Meu pai abriu a porta, tirou a Lady e nos deixou trancados lá até na hora do jantar. As coisas pioraram um pouco, porque nós tivemos a ideia de descascar umas batatas que estavam lá dentro e depois cozinha-las no ferro de passar.

Embora fosse uma casa grande, ela estava sempre tomada por sons: vozes, festas, músicas. Pouco a pouco o barulho foi diminuindo, assim como os moradores. Depois de um tempo era só mamãe e eu, dava até eco falar de um cômodo para o outro. Era hora de mudar, nossa casa não tinha sido feita pro silencio, pro vazio.  Até hoje quando eu sonho que estou em casa, é a porta da Domingos Cosate/544, que eu abro. Até hoje quando vou visitar minha avó paterna (ela mora ao lado) sou tomada uma incrível nostalgia. Reconheço os cheiros e os gostos da minha infância, sinto minhas raízes e constato que foram elas que me fizeram crescer tão forte.